TERRA NULLIUS | Jornal de Notícias

TERRA NULLIUS ENVOLVE O PÚBLICO NA PERFORMANCE; A OUVIR E CAMINHAR

Dora Mota

O grupo de pessoas que passou caminhando, em silêncio, com auscultadores nos ouvidos, junto ao rio Ave, em Vila do Conde, no final de tarde desta quinta-feira causou estranheza a alguns transeuntes. Ao longo de uma hora, caminharam desde a praia da Azurara até ao areal da capela da Senhora da Guia, passando pelo centro da cidade, a essa hora – entre as 19 e as 20 horas – bastante preenchida de trânsito.

Essas vinte pessoas estavam concentradas no papel fundamental de serem, ao mesmo tempo, público e cocriadores de TERRA NULLIUS, a performance imersiva que a artista Paula Diogo levou ao 18º Circular – Festival de Artes Performativas vilacondense. Ora alinhados a ouvir as instruções do arranque, ora caminhando em fila incerta, ora parando aqui e ali, apreciando a paisagem ribeirinha, os vinte participantes formavam uma “comunidade efémera, mas onde cada um tem o seu próprio ritmo”.

Foi este o desafio de Paula Diogo, que já tinha apresentado TERRA NULLIUS em sete cidades entre a América Latina e a Europa, duas delas portuguesas (Montemor-o-Velho e Lisboa), sendo Vila do Conde o oitavo lugar de acolhimento. Era dela a voz que iam ouvindo ao longo do caminho, com outros sons e outras vozes que a artista convocou para o seu texto, com sonorização de João Bento. Tanto Paula como João participaram nesta primeira apresentação das três que integram o programa do Circular, sem que o restante grupo se apercebesse.

O texto nasceu de uma residência da artista em Reykjavik, a capital da Islândia, durante um ano, entre 2018 e 2019, a desenvolver um projeto que tentava capturar uma “experiência do lugar”, cruzando-a com narrativas pessoais e coletivas. Trabalhou-o no âmbito do Mestrado em Artes Performativas, e apresentou-o naquela cidade, e ainda em duas cidades da Colômbia, e noutras duas de França e Bélgica.

Sempre igual e sempre diferente

Em todas as cidades onde se apresenta, TERRA NULLIUS é sempre igual e sempre diferente. É igual o que se escuta, que pode ser em português ou inglês, mas torna-se distinto em cada palco urbano pela interação que a equipa cria previamente com as especificidades da paisagem local. No caso de Vila do Conde, a ponte com Reykjavik podia fazer-se muito pela água, com a foz do Rio Ave a ligar essas geografias tão distintas, mas não só.

“A linha de história é a mesma, é a história de alguém que chega como estrangeira a uma cidade e vê o que acontece no confronto com esse sítio novo”, disse Paula Diogo ao JN, no final da caminhada. “O trabalho fala sobre temas que são transversais a vários países, a várias cidade e a vários contextos: a relação com o espaço público, a privatização dos espaços que deixa de ser ocupado pelas pessoas, a gentrificação… Acho que facilmente a história se relaciona com pessoas de contextos muito diferentes”, assinalou.

Parece que se está a passear, com Paula a conversar connosco, entrelaçando os assuntos como se fosse apontando caminhos – com vários momentos, temáticos ou de sons ambiente, a criarem sobreposições. É intencional, e é aquilo que torna cada apresentação do TERRA NULLIUS diferente em cada lugar.

“Tentamos localizar a história naquela cidade nova, ouvi-la a caminhar nessa cidade e tentar perceber o que é que ressoa. Que ligações e conflitos existem entre o que estamos a ver e o que estamos a ouvir, e procuramos potenciar essas coisas todas”, explicou Paula Diogo. A reperagem (instalação técnica) leva muitas horas e muitos quilómetros e, em Vila do Conde, há vários momentos em que a voz de Paula parece estar a falar-nos dali mesmo, naquele momento – ou o som das ondas do mar que sai dos auscultadores poderá ser também – será? – o som do Atlântico ali quase à nossa frente.

O que acontece, ao fim e ao cabo, é que cada pessoa cria alguma relação com cada lugar – o que se torna numa espécie de anulação pessoal, e necessariamente única e intransmissível – de TERRA NULLIUS. O nome deste projeto é o termo da lei internacional usado para definir territórios que não pertenciam a ninguém, podendo por isso ser ocupados e declarados como território “novo”, sem leis, onde se poderia começar uma sociedade nova. A ideia ocorreu a Paula depois de ler o livro “Terra Nullius”, do dinamarquês Sven Lindqvist.

“O livro fala sobre o processo de colonização da Austrália, mas achei que podia ser um mote para falar de uma história nossa que é muito difícil de tocar e discutir, principalmente porque é difícil encontrar pontos de entrada para falar dela. Que é a história de um país do ponto de vista de uma pessoa”, afirmou Paula Diogo. No final da caminhada, a brasileira Lúcia tinha feito a viagem íntima que a artista queria provocar.

“Foi a minha própria viagem”

Natural do Rio de Janeiro, a viver entre a Póvoa de Varzim e Vila do Conde há cinco anos, a mulher cujos belos cabelos brancos frisados se destacavam no grupo de cabeças, repetia ter gostado muito. Ainda com a areia da praia nos pés, Lúcia reconhecia que a experiência lhe chamara a atenção para “alguns pontos que passam despercebidos”.

“Foi a minha própria viagem, pensei no porque é que eu vim para uma terra que não é minha… novos contactos, novas amizades, novo modo de viver. Só isso já me levou para o outro lado, mas também o facto da ocupação dos espaços que às vezes nos são tomados. Quando, de repente, alguém se apossa daquele espaço e se perde a identidade do local. Foi com esses pensamentos que vim”, declarou.

A jovem Camila, estudante no Porto, por seu turno, deixou-se levar pela descoberta total: escolhera este espetáculo porque era, em todo o programa do Circular, aquele cuja hora mais lhe convinha. “O passeio foi incrível porque não conheço Vila do Conde e foi muito bom ver os locais que escolheram. Na história, houve momentos que dispersei, outros que ouvi com muita atenção… reagi à minha maneira. E o final foi a melhor parte!, relatou.

A preparar-se para voltar a Santo Tirso, e também satisfeita com a experiência, estava Maria José. “Achei que íamos simplesmente caminhar e gostei bastante porque tem uma história… e todos nós temos uma história para contar. Foram sensações boas, que me levaram a pensar coisas boas”, disse.

Reportagem publicada no Jornal de Notícias em 23/09/2022.


fotos @Igor Martins/Global Imagens