CELESTIAL BODIES | Publicação – preview IV

Corpos que caminham por Nora Tormann

Apesar de a maioria das artistas terem participado no encontro Celestial Bodies presencialmente, na Moita e em Lisboa, algumas de nós participaram de outros lugares – Reiquiavique, Poznan, e eu primeiro em Viena e mais tarde nas montanhas austríacas. Na Moita, o grupo sentou-se em cimento macio, mergulhando na comunidade. Enquanto isso, eu caminhava por cima de pedras grandes e pequenas, por montanhas ásperas e vales macios. Foram dias longos de caminhada – começando pela manhã, chegando à noite. Nas montanhas, eu estava basicamente sozinha com os meus pensamentos e carregava comigo reflexões sobre as conversas e práticas em que participava online, em Viena.

A cada passo, sentia como o acto de caminhar se transformava cada vez mais num modo de percepção, num modo de estar: o acto de caminhar é um estado de transição, um devir constante – um devir constante da viagem. O acto de dar um passo de cada vez é uma manifestação do estar presente, no agora. Desafia o tempo através de uma lentidão radical que não encaixa nas expectativas capitalistas de produtividade. O acto de pôr um pé à frente do outro é um permanecer entre dois passos – visto que, na acção de dar um passo, o corpo permanece suspenso em grande medida, e só no último momento se segura pondo o pé no chão – uma e outra vez.

Há algo poético no caminhar, e ao ler o texto da Paula, “Cimento macio”, cada vez penso mais que se aproxima de uma metáfora física para a prática artística, que pode ser uma prática artística por direito próprio. A Paula fala do Celestial Bodies como desejando um “espaço para uma prática artística respirável e flexível, [que] ao mesmo tempo [permanece] assertiva e focada”. Como isto é um estado transitório.

Gosto de pensar no Celestial Bodies como um organismo conjunto que caminha. Como um corpo em movimento que se reúne para ir numa viagem, numa transição em conjunto. Como um corpo que se compromete a ouvir as paisagens por onde caminha, ouvindo ao mesmo tempo o corpo em movimento, conferindo constantemente as suas diversas condições e capacidades.

Entretanto, em muitos países europeus, confrontamo-nos com governos proto-fascistas, homofóbicos e transfóbicos que põem o lucro acima das pessoas e defendem que fazer face à crise climática custa demasiado dinheiro. Afinal de contas, essas lógicas agarraram-se ao pressuposto de que o “humano” gira em torno da norma de um corpo branco, cisgénero e masculino, heterossexual, racional, rico e sem deficiência, e de que seria o direito inerente desse corpo ocupar o máximo de espaço possível – com pouca ou nenhuma consideração por outros corpos, humanos e não-humanos.

Em 2021 este pressuposto tem sido amplamente contestado e tem alimentado revoltas poderosas em todo o mundo. Pensando nos ensaios de Paul B. Preciado 1, quero apresentar aqui a poderosa delicadeza da transição. A transição é tomada como um estado de ser e como um modo de percepção, que se recusa a aceitar que posições normalizadas sejam um ponto de vista suficientemente comum para nos relacionarmos com o mundo. Põe em questão as linhas que dividem o pensamento, as terras e as pessoas enquanto entidades que são como são – fixadas. O compromisso para com a transição expressa a mudança através do corpo. Uma e outra vez. Compromete-se a desfazer-se pelo que está ao redor, por dentro, e especialmente entre essas dicotomias. Celebra o que está para além da dicotomia.

As pessoas – e ainda mais as condições em que vivem – são demasiado diferentes entre si para definirem uma única forma de transição. Em vez disso, trata-se de perguntar quais são os nossos domínios individuais e colectivos de transição. Onde é que a suspensão entre passos acontece nas nossas vidas, e como é que podemos alimentar o desconforto que a acompanha? Como é que podemos construir comunidades onde nos apoiamos mutuamente quando nos sentimos perdidos ao entrar na incerteza? 

1 Paul B. Preciado, An apartment on Uranus – Chronicles of the Crossing.


Walking bodies by Nora Tormann

Although the majority of the artists attended the Celestial Bodies meeting in person, in Moita and Lisbon, a couple of us attended from other places – Reykjavík, Poznan, and me at first from Vienna and later from the Austrian mountains. In Moita, the group sat on soft concrete, sinking into community. Meanwhile, I walked over smaller and bigger stones, over harsh mountains, and through soft valleys. It was long days of walking – starting in the morning, arriving in the evening. In the mountains, I was mostly alone with my thoughts and carrying with me afterthoughts from conversations and practices that I’ve participated in while attending online from Vienna. 

With every step taken, I felt how the act of walking more and more transformed into a mode of perception, into a mode of being: the act of walking is a state of transition, a constant becoming – a constant becoming of the journey. The act of taking one step at a time is a manifestation of being present, of now-ness. It defies time through radical slowness that doesn’t fit into capitalist expectations of productivity. The act of taking one step after the other is a lingering between two steps – as the action of taking a step is one in which the body vastly rests in suspension and only in the very last moment catches itself by putting the foot to the ground – over and over again. 

There is something poetic in walking, and reading Paula‘s text “Soft concrete” I more and more come to think that it approximates a physical metaphor for artistic practice, that it may be an artistic practice in its own right. Paula talks about the Celestial Bodies meeting longing for this “space for a breathable and flexible artistic practice [that] at the same time [remains] assertive and focused”. How this is a transitory state. 

I like to think of Celestial Bodies as a joint organism walking. As a body in motion that comes together to be on a journey, in transition together. As a body committing to listening to the landscapes it walks through while at the same time listening to the moving body, constantly checking in with its varying conditions and capacities. 

Meanwhile, in many European countries, we are confronted with proto-fascist and homo and transphobic governments that place profits over people and argue that the climate crisis is too expensive to be dealt with. After all, these logics clung on to the assumption that the “human” centers around the norm of a white, cis-male, heterosexual, rational, rich and able body, and that it would be this body‘s inherent right to take as much space as possible – with little or no regard towards other human and other-than-human bodies. 

By 2021 this assumption has been vastly contested and has fueled powerful uprisings all over the world. Thinking of Paul B. Preciado‘s essays 1, I want to put forward here the powerful delicacy of transitioning. Transitioning is taken as a state of being and as a mode of perception, one that refuses to accept that normalized positions are enough of a common viewpoint to relate to the world. It puts into question the lines that divide thinking, lands, and people as entities that are as they are – fixed. Committing to transitioning manifests change through the body. Over and over again. It commits to becoming undone by what is around, inside, and especially between those dichotomies. It celebrates what goes beyond dichotomy. 

People – and even more so the conditions they live in – are too different to define a single way of transitioning. Instead, it is about asking what are our individual and collective realms of transitioning. Where does the lingering between steps take place in our lives, and how can we nourish the discomfort that comes with it? How can we build communities where we have each other’s backs when we feel lost as we go into the uncertain?

1 Paul B. Preciado, An apartment on Uranus – Chronicles of the Crossing.