SHAMPOO [autobiografia do chão] | ENTREVISTA | Festival d’Aurillac

A imaginação não tem limites na viagem à infância de Renato Linhares

O coreógrafo e bailarino brasileiro Renato Linhares levou a performance SHAMPOO [autobiografia do chão] ao Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França, que decorreu de 20 a 23 de Agosto. É sobre rodas que ele conta a sua história, cruzando dança, circo, teatro, patinagem artística e muito movimento ao ritmo de música ao vivo e de ruídos que cria com os objectos inesperados que arrasta. Tudo parte de uma memória de infância: as esculturas de sabão e os penteados de senhora que fazia no chuveiro. “Um manifesto” a lembrar o poder da imaginação das crianças, diz Renato Linhares.

Como é que descreve a peça SHAMPOO [autobiografia do chão]?

“É um espectáculo sobre rodas. Eu faço o espectáculo todo sobre patins. A patinagem artística é uma modalidade, uma fisicalidade que eu tenho no meu corpo desde que sou muito pequeno. Comecei a patinar com dez anos em Porto Alegre, que é a cidade onde eu nasci. Patinei durante nove anos profissionalmente e fui esse tipo de criança que não teve infância, que passou a vida inteira dedicado ao desporto. Durante a pandemia, eu resolvi voltar a patinar e comprei uns patins para sair de casa, pegar ar, voltar a exercitar-me, fazer alguma coisa que não fosse encerrado dentro de casa. Quando eu fiz esse regresso, esse tipo de movimentação, eu comecei a imaginar esse espectáculo.

A coisa toda gira em torno de uma imagem da minha infância, que é uma memória. Eu, muito pequeno, com seis ou sete anos, tinha um cabelo comprido e ficava, como muitas crianças, fazendo penteados com champô. Fazia coques altos, fazia actrizes de novela, de cinema, fazia os cabelos da minha mãe e da minha irmã, sempre cabelos de personagens femininos, de mulheres. Eu já tinha a consciência de que aquele mundo se encerrava ali. Foi quando eu comecei a poder tomar banho sozinho.

Era um lugar onde eu podia imaginar, onde a minha imaginação ia mais longe do que eu podia exercer na minha vida. Então, foi a partir dessa imagem que era produzida dentro do banheiro, esse jogo, essa brincadeira de criança que depois se desfazia com a janela aberta porque o vapor levava a existência daquele mundo. Quando eu saía do banho, eu já não podia mais ser, de certa forma, aquela criança. E eu resolvi fazer um espectáculo.”

Um regresso à infância e uma grande brincadeira em palco?

“Um manifesto também. Lembrar que a criança pode imaginar tudo. Que tolos somos nós de pensar que elas estão restritas à nossa imaginação ou àquilo que a gente as permite imaginar, ou que a gente sonha que elas imaginem ou que a gente deseja que elas imaginem. Elas estão imaginando coisas incríveis. Um mundo em destruição elas são capazes de entender qualquer coisa, de vislumbrar qualquer mundo. Então, é uma espécie de manifesto: deixem as crianças imaginar o que elas quiserem, isso não faz diferença, pelo contrário, quanto mais a gente puder imaginar e não precisar realizar certas coisas, penso que pode ser melhor.”

Para recriar esse imaginário, recorre a vários objectos inesperados, nomeadamente os plásticos. Quer-me falar dessas escolhas?

“Sim, foi uma escolha bastante prática. Quando você patina, por causa da velocidade que o corpo é capaz de criar, você produz vento. Então, desse sistema, dessa tecnologia que os patins produzem, eu fui pensando em coisas. Comecei a encher um saco desses de supermercado e fui brincando com ele, vendo. Olha, o ar entra, o ar fica por causa da velocidade dos patins eu sou capaz de inflar sacos muito grandes. Comecei a produzir esses infláveis, há um que tem 19 metros, outros de 15 metros de comprimento e três de largura. Eu faço esses grandes banhos de espuma, grandes banheiras, grandes nuvens, pensei naquilo que flutuava no ar, por motor.

Comecei a trabalhar e a pesquisar formas com materiais plásticos e, aos poucos, fui vendo que patinar era também fazer desenhos coreográficos no chão. Eu fui vendo que também estava construindo uma história que se passava no rés-do-chão, muito próximo daquilo que a gente pisa. Vi umas imagens assim. Ao mesmo tempo que a gente faz história, a gente pisa na história. Eu comecei a dar a ver ao público tudo aquilo que passa pelo chão. Eu arrasto tudo o que está em volta de mim. No espectáculo, arrasto vasos de plantas, escadas, cadeiras, uma porta de um carro. E também o imaginário faz história no chão.”

Além dos todos os sons criados pelos objectos que arrasta, também tem música ao vivo. Como é que foi essa escolha e como correu o processo de criação musical?

“O Ricardo Dias Gomes é um músico que eu conheço e este já é o nosso quarto trabalho juntos. Ele é muito especial, a gente brinca que temos uma mesma forma de se dispor dentro do palco, ele na música e eu no movimento. A gente comunica muito bem. Somos muito amorosos um com o outro nessa comunicação. E ele é muito sensível para absorver o som que os próprios materiais fazem e, a partir disso, construir a musicalidade, aquilo que que eleva o som da vida para a música, para a arte musical. Ele é um multi-instrumentista, é uma pessoa incrível.”

Música, dança, circo, teatro, patinagem artística, acrobacias… O Renato Linhares traz diferentes disciplinas das artes performativas para o palco. Porquê?

“Eu sou actor, eu colaboro com a companhia portuguesa que produz o espectáculo, que é a Má-Criação, que é uma companhia que tem artistas multidisciplinares, que são artistas de várias áreas, e a Paula Diogo é a minha maior colaboradora. A gente já fez outros trabalhos juntos, a gente escreve, a gente dirige, colaboramos com o outro, a gente está sempre colocando a mão no trabalho do outro. Tem muito teatro também, conto histórias, brinco, converso, é também ligeiro.”

Em poucas linhas, qual foi o seu percurso até agora?

“Eu sou um artista da cena. Eu gosto muito de pensar e de desenvolver trabalhos da performance como dançarino, como acrobata, como director [encenador]. Mas também escrevo. Todas essas áreas que envolvem o teatro e a dança são de igual importância para mim. Eu gosto é de estar na sala de ensaio. O Renato ama a sala de ensaio!”

(Entrevista concedida a Catarina Branco da Rádio RFI.)


@Vincent Muteau

SHAMPOO [autobiografia do chão] é financiado por Direção Geral das Artes – República Portuguesa.