Morrer no Teatro: uma reflexão

Uma reflexão tendo por base o espectáculo MORRER NO TEATRO no Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal) por Fernanda Gama (espectadora) a 27/01/2019

A reflection about the show DYING IN THE THEATRE presented at Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal) by Fernanda Gama (audience member)

As paredes guardam memórias. 

As memórias das paredes de um Teatro são infinitas.

Quando as citações e os nomes de grandes dramaturgos, escritores foram declamados, gritados no palco e na plateia do nosso TMBD, pequenas focos de luz cintilaram em todos os espaços que constituem em magnífico teatro edifício: pelas paredes, teto, chão, cadeiras, nas frisas, nos camarotes, no chão branco do palco, na teia, nos bastidores, nos lustres, nas varas, nos cenários, nas cordas, tudo o que era real. Eram pequenos pirilampos piscando. Imperceptíveis à maior parte das pessoas. Mas eu vi-os. Vi e compreendi a razão das memórias, a importâncias das vozes dos autores, que tanto foram para nós. A razão da existência do ator. 

As vozes, ressuscitaram em nós a vontade de renascer. Como a Beatriz. A Beatriz que chorou e nós sorrimos. Mas já lá vamos.

O corpo negro pousado sem vida na neve permaneceu inerte, mas um vaga-lume também por lá saltitou. Ninguém ousou levantar-se e ver o que se passara com o corpo que tombara na neve.

Morrer no Teatro ou Morrer para o Teatro?

São tantas as vezes que nos invade a vontade morrer para o teatro. 

Mas o teatro é chamamento, redenção. Em última análise ele é uma prisão…. de portas abertas. Quem teve o chamamento, só poderá morrer para ele, o Teatro, quando efectivamente deixar este mundo.

Ninguém, apenas o ator, conhece o sofrimento de olhar, olhos nos olhos, o espetador. O confronto. 

Ninguém, como ele, conhece o sofrimento de um dia ser e no dia seguinte deixar de ser.

Só ele sabe o que vibrar com a aceitação, para logo ser rejeitado no momento seguinte.

“Ninguém ama tão rebarbativamente como o ator”… um não sei quê de ilusões e desilusões. Porque também ninguém sofre tão paulatinamente quanto ele, o ator.

Na entrega pura e desinteressada, dá-se o encontro ator-personagem. E a transfiguração. A entrega total ao público. 

Não são os corpos que se unem, não são línguas a percorrer o sexo, não são gemidos, não são corpos em comunhão, não é suor, não é o ato sexual em si, são mentes em fusão. 

Mentes que não pensam igual, mas obrigam-se a conviver umas com as outras, numa grande consciência conjunta. E o espetáculo fez-se de entrega total de todos. E o prazer foi colectivo, intenso, orgástico, num sentido transcendente. Mentalmente, o ator conseguiu agarrar o público e levou-o sempre com ele, até ao fim. Até à “des-transfiguração”.

O ator despiu-se de todo e qualquer preconceito. Foi equilibrista sem rede, foi ginasta, foi obsceno, foi sincero, foi agente de mudança, foi masturbatório, foi coragem, foi sentimento, foi louco, foi lucidez, foi comediante, foi gozo, foi a verdade da mentira. Fez perguntas difíceis e as respostas ficaram com cada um de nós. Ninguém precisa saber as nossas respostas. As perguntas eram para reflexão interna. Para cada um se poder encontrar consigo próprio. Sem julgar os outros e sem se julgar.

Seria eu capaz? Seríamos nós capazes? Que faríamos no seu lugar? E No nosso lugar?

Sem escapatória possível, o ator tomou-nos nas mãos. Prendeu-nos às palavras do argumento. Ficar ou não ficar, nem era decisão.

Soltou-se a loucura de não se saber ser de outro modo. Mas de se procurar ser.

Soltou -se a necessidade de encontrar um fio condutor.

Ninguém sabe qual de nós será o primeiro a deixar a vida, mas todos pensaram certamente, oxalá não seja eu, porque….

A partilha foi bonita, mas crua e dramática. Um “átomo ao contrário”, na anti matéria que se extinguiu. Como o amor. Não existem instantes de entrega absoluta para todo o sempre. Nem sempre se ama o teatro. Nem sempre se ama o ator. Um espectáculo, por vezes nem no diz nada. 

Todos temos uma um botão, uma tecla escondida, à espera de ser tocada. Nesses raros momentos é o paraíso. A comunhão, o sexo virtual em código binário. Depois, a tecla pára de tinir e o caracol volta para dentro da concha. E é massa amorfa dentro de si, à espera de outra oportunidade. Precisamos de teclas na nossa vida, para poder acordar no dia seguinte e acreditar que o dia valerá a pena.

É por momentos destes que amo o teatro, quando me tocam na tecla certa. Não sou de sítio nenhum para poder ser de todos e escolher, em cada momento, onde quero estar. Ando sempre à procura que descubram a tecla certa. Nem sempre acontece…

Um grupo de pessoas, preso dentro do Teatro. Para sobreviver, foi obrigado a pensar em tudo… coisas que não irei agora verbalizar, mas que ficaram….

Presos que estávamos, sem expectativas…O amor aconteceu e a Beatriz nasceu. E a Beatriz reergueu a comunidade em desagregação. A Criança instaurou uma nova ordem.

Quantas vezes nas nossas vidas damos esse peso de responsabilidade a um ser que nem racionaliza ainda?

Um ser tão pequeno, perfeito, … numa inocência que se perde à medida que o tempo passa.

De repente, o teto do teatro explodiu e a vida renasceu.

Foi azul e luz.

Quem rebentou com o teatro foi a vida. 

A vida que se quer nova, diferente, clara.

Morrer no Teatro. 

Um espectáculo em que o teatro é entretenimento e verdadeiro momento de reflexão.

É assim que o quero e gosto.

Não feira de vaidades, não ” o meu será melhor que o teu”, não o vedetismo exacerbado de alguns, não lições de moral encomendadas, não terapia para recalcamentos antigos, não piadas privadas apenas para alguns, não conjunto de palavras pesadas sem sentido, não sofrimento exacerbado, não lista de desgraças nossas e alheias, … apenas um toque na tecla certa. Cada um com a sua tecla.

O teatro é feito para o público.

É nele que devemos sempre pensar quando preparamos um espetáculo.

E o público, a maior parte das vezes tem razão.

O teatro é a vida, que todos sabem não ser mar de rosas.

Há corpos que jazem no chão e vão jazer para todo o sempre nessa posição.

A vida humana. 30 cm numa fita cronológica. Uma fita que se constrói, mas não se antevê.

Posso não chegar amanhã. Posso deixar de ser variável para a fita.

Fomos ao teatro ver um espetáculo sem expectativas e saímos dali com a certeza que o teatro jamais morrerá. Nós, podemos certamente morrer num teatro, mas o teatro-arte permanecerá para sempre. Está vivo e recomenda-se.

Começou, quase no início da tal fita cronológica da humanidade, e certamente continuará, enquanto o homem aqui estiver.

Obrigada por me fazerem sentir viva, no “Morrer no Teatro”

Morrer no Teatro: uma reflexão

Uma reflexão tendo por base o espectáculo MORRER NO TEATRO no Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal) por Fernanda Gama (espectadora) a 27/01/2019

A reflection about the show DYING IN THE THEATRE presented at Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal) by Fernanda Gama (audience member)

As paredes guardam memórias. 

As memórias das paredes de um Teatro são infinitas.

Quando as citações e os nomes de grandes dramaturgos, escritores foram declamados, gritados no palco e na plateia do nosso TMBD, pequenas focos de luz cintilaram em todos os espaços que constituem em magnífico teatro edifício: pelas paredes, teto, chão, cadeiras, nas frisas, nos camarotes, no chão branco do palco, na teia, nos bastidores, nos lustres, nas varas, nos cenários, nas cordas, tudo o que era real. Eram pequenos pirilampos piscando. Imperceptíveis à maior parte das pessoas. Mas eu vi-os. Vi e compreendi a razão das memórias, a importâncias das vozes dos autores, que tanto foram para nós. A razão da existência do ator. 

As vozes, ressuscitaram em nós a vontade de renascer. Como a Beatriz. A Beatriz que chorou e nós sorrimos. Mas já lá vamos.

O corpo negro pousado sem vida na neve permaneceu inerte, mas um vaga-lume também por lá saltitou. Ninguém ousou levantar-se e ver o que se passara com o corpo que tombara na neve.

Morrer no Teatro ou Morrer para o Teatro?

São tantas as vezes que nos invade a vontade morrer para o teatro. 

Mas o teatro é chamamento, redenção. Em última análise ele é uma prisão…. de portas abertas. Quem teve o chamamento, só poderá morrer para ele, o Teatro, quando efectivamente deixar este mundo.

Ninguém, apenas o ator, conhece o sofrimento de olhar, olhos nos olhos, o espetador. O confronto. 

Ninguém, como ele, conhece o sofrimento de um dia ser e no dia seguinte deixar de ser.

Só ele sabe o que vibrar com a aceitação, para logo ser rejeitado no momento seguinte.

“Ninguém ama tão rebarbativamente como o ator”… um não sei quê de ilusões e desilusões. Porque também ninguém sofre tão paulatinamente quanto ele, o ator.

Na entrega pura e desinteressada, dá-se o encontro ator-personagem. E a transfiguração. A entrega total ao público. 

Não são os corpos que se unem, não são línguas a percorrer o sexo, não são gemidos, não são corpos em comunhão, não é suor, não é o ato sexual em si, são mentes em fusão. 

Mentes que não pensam igual, mas obrigam-se a conviver umas com as outras, numa grande consciência conjunta. E o espetáculo fez-se de entrega total de todos. E o prazer foi colectivo, intenso, orgástico, num sentido transcendente. Mentalmente, o ator conseguiu agarrar o público e levou-o sempre com ele, até ao fim. Até à “des-transfiguração”.

O ator despiu-se de todo e qualquer preconceito. Foi equilibrista sem rede, foi ginasta, foi obsceno, foi sincero, foi agente de mudança, foi masturbatório, foi coragem, foi sentimento, foi louco, foi lucidez, foi comediante, foi gozo, foi a verdade da mentira. Fez perguntas difíceis e as respostas ficaram com cada um de nós. Ninguém precisa saber as nossas respostas. As perguntas eram para reflexão interna. Para cada um se poder encontrar consigo próprio. Sem julgar os outros e sem se julgar.

Seria eu capaz? Seríamos nós capazes? Que faríamos no seu lugar? E No nosso lugar?

Sem escapatória possível, o ator tomou-nos nas mãos. Prendeu-nos às palavras do argumento. Ficar ou não ficar, nem era decisão.

Soltou-se a loucura de não se saber ser de outro modo. Mas de se procurar ser.

Soltou -se a necessidade de encontrar um fio condutor.

Ninguém sabe qual de nós será o primeiro a deixar a vida, mas todos pensaram certamente, oxalá não seja eu, porque….

A partilha foi bonita, mas crua e dramática. Um “átomo ao contrário”, na anti matéria que se extinguiu. Como o amor. Não existem instantes de entrega absoluta para todo o sempre. Nem sempre se ama o teatro. Nem sempre se ama o ator. Um espectáculo, por vezes nem no diz nada. 

Todos temos uma um botão, uma tecla escondida, à espera de ser tocada. Nesses raros momentos é o paraíso. A comunhão, o sexo virtual em código binário. Depois, a tecla pára de tinir e o caracol volta para dentro da concha. E é massa amorfa dentro de si, à espera de outra oportunidade. Precisamos de teclas na nossa vida, para poder acordar no dia seguinte e acreditar que o dia valerá a pena.

É por momentos destes que amo o teatro, quando me tocam na tecla certa. Não sou de sítio nenhum para poder ser de todos e escolher, em cada momento, onde quero estar. Ando sempre à procura que descubram a tecla certa. Nem sempre acontece…

Um grupo de pessoas, preso dentro do Teatro. Para sobreviver, foi obrigado a pensar em tudo… coisas que não irei agora verbalizar, mas que ficaram….

Presos que estávamos, sem expectativas…O amor aconteceu e a Beatriz nasceu. E a Beatriz reergueu a comunidade em desagregação. A Criança instaurou uma nova ordem.

Quantas vezes nas nossas vidas damos esse peso de responsabilidade a um ser que nem racionaliza ainda?

Um ser tão pequeno, perfeito, … numa inocência que se perde à medida que o tempo passa.

De repente, o teto do teatro explodiu e a vida renasceu.

Foi azul e luz.

Quem rebentou com o teatro foi a vida. 

A vida que se quer nova, diferente, clara.

Morrer no Teatro. 

Um espectáculo em que o teatro é entretenimento e verdadeiro momento de reflexão.

É assim que o quero e gosto.

Não feira de vaidades, não ” o meu será melhor que o teu”, não o vedetismo exacerbado de alguns, não lições de moral encomendadas, não terapia para recalcamentos antigos, não piadas privadas apenas para alguns, não conjunto de palavras pesadas sem sentido, não sofrimento exacerbado, não lista de desgraças nossas e alheias, … apenas um toque na tecla certa. Cada um com a sua tecla.

O teatro é feito para o público.

É nele que devemos sempre pensar quando preparamos um espetáculo.

E o público, a maior parte das vezes tem razão.

O teatro é a vida, que todos sabem não ser mar de rosas.

Há corpos que jazem no chão e vão jazer para todo o sempre nessa posição.

A vida humana. 30 cm numa fita cronológica. Uma fita que se constrói, mas não se antevê.

Posso não chegar amanhã. Posso deixar de ser variável para a fita.

Fomos ao teatro ver um espetáculo sem expectativas e saímos dali com a certeza que o teatro jamais morrerá. Nós, podemos certamente morrer num teatro, mas o teatro-arte permanecerá para sempre. Está vivo e recomenda-se.

Começou, quase no início da tal fita cronológica da humanidade, e certamente continuará, enquanto o homem aqui estiver.

Obrigada por me fazerem sentir viva, no “Morrer no Teatro”