SOBRE A MEMÓRIA OU COMO DESAPARECER POR VONTADE PRÓPRIA
por EDUARDA NEVES, professora de Teoria e Crítica de Arte Contemporânea, investigadora, escritora, curadora de arte, e, desde 2015, directora da Escola Superior Artística do Porto.
Paula Diogo imaginou o ciclo Sobre Lembrar e Esquecer para falar sobre o modo como a memória opera nas nossas vidas. Este ciclo, uma triologia, que se completou com o espectáculo A ESTAÇÃO DE OUTONO (2021), e que inclui os espectáculos Sobre Lembrar e Esquecer (2018) e Paisagem (2021), reuniu a colaboração de diversos artistas e criadores e entidades co-produtoras. Para nos trazer também um olhar exterior sobre este projecto, propusemos a Eduarda Neves a escrita de uma reflexão a partir destes três espectáculos, a quem estamos muitíssimo gratos pela disponibilidade e interesse com que aceitou o nosso convite. Com muito prazer, e brindando também a todos os criadores envolvidos nesta triologia, partilhamos aqui essa reflexão.
Sobre a memória ou como desaparecer por vontade própria
Eduarda Neves
Quatro mulheres. Uma casa. Muitas histórias. As de cada uma e as de todos nós. Entre a tragédia, o amor e o acontecimento, os enunciados aproximam-se em várias línguas numa espécie de reserva comum. Entre nós e os outros apenas um instante e três mil anos de história. Sobre Lembrar e Esquecer1 oferece-nos a memória como promessa do impossível retorno do tempo sobre si mesmo. O passado que se torna eco no presente – um rizoma sem principio nem fim. Um caderno, a palavra e a escrita. Contra o esquecimento: Hiroshima, Sarajevo, Bósnia, o corpo e a matéria, Córsega e a família, a infância e o afecto. O jardim e a vida. O mar e a mãe. O narrador e o narrado numa única voz. Uma ilha.
Integradas na ordem do espectáculo, as estruturas cénicas anunciam-se como formas de uma arte mnemónica na qual o dia e a noite, a luz e a sombra, a recordação e o esquecimento se constituem enquanto figuras da duração e da ruína – o tempo da história, da memória e da casa. Não há ficção, apenas a dança do pensamento. Múltiplas representações que tanto declaram o abandono, a perda e o desmembramento, como restauram a matéria do mundo. Uma iconografia da passagem.
Não se trata de descobrir o tempo verdadeiro mas de uma pluralidade real. Se as questões filosóficas sobre o tempo são diferentes das científicas, também sabemos que é impossível colocar a questão do tempo de forma intemporal. O tempo físico e o tempo subjectivo da consciência, apesar de estabelecerem laços entre si, não são redutíveis um ao outro, diz-nos Étienne Klein. Se o primeiro não está sujeito a cada um de nós, o segundo depende de quem o experiencia e, ao contrário do tempo físico, não é uniforme. Só existimos no tempo e nele pensamos o mundo. O passado deixa de o ser quando interrompemos a primeira formulação do tempo: o movimento. Obscura descrição para uma ontologia paradoxal que confere realidade à ausência. Movemo-nos no espaço e trocamos a direcção. Impossível deslocação no tempo:
O espaço é assim o lugar da nossa liberdade, o tempo, a metáfora do aprisionamento.2
Nunca se esquecem de voltar, os pássaros. Nunca se esquecem do espaço, os pássaros. Não precisam de o escrever. Eu não sei se sei do espaço, se ele se me apresenta com falhas, com vazios, nos quais não consigo inscrever matéria. Esqueço-me. Por outro lado: “Elephants never forget that they are awesome”. “Zou wa karera-ga sugoi koto keshite wasurenai”. 3
A consciência organiza o tempo e desenvolve-se através da memória. Avalia a passagem entre o que já passou e o que ainda não é: “Dia 10 de Maio de 2015. Hoje é domingo. O tempo está bom. O que passou, passou. O tempo está bom.”4 Memória derivada que se arrisca na mutabilidade do tempo e do espaço. Não se reduzindo a uma simples experiência da duração, o tempo configura-se como alteridade que se desfaz perante o idêntico. Já não se trata da relação essência-aparência, modelo-cópia, eu-outro. Nem o modelo do Outro, nem a procura da origem:
Se perdesse a memória, se ficasse desmemoriada (…) não interessaria saber ou escolher género e, se me perguntassem, acho que me apresentaria como pessoa sem género, ou, se calhar, menos pessoa mas mais bicho ou outra matéria vegetal. Não importaria saber o meu nome mas poderia ter o nome que quisesse, quando quisesse, como, por exemplo: cadeira, elástico, matemática, pata de veado, compaixão, mudando com a hora, com a luz, com a sensação. 5
É ainda na constituição da experiência que a memória não se limita a evocar um mero registo imitativo e passivo dos acontecimentos: “terrível esta memória estacionada dentro do meu peito, aqui a repetir-se em loop, a ocupar espaço aqui dentro, como um avião num hangar”, diz Vânia em Paisagem 6 – procura a leveza de um casaco branco como a cor de algumas mariposas ou a possibilidade de ser um oceanógrafo, “para conseguir mergulhar em cavidades tão profundas” nas quais “cada um de nós é um abismo e ficamos com vertigens se olhamos lá para o fundo”7.
Vânia e Octávio percorrem a estrada. Sem princípio nem fim à vista. O espaço cénico tornado vital, um trajecto desenhado a preto e branco que progressivamente se dissemina numa rede de sons e luzes que acompanham a estrutura dramática. Sentados à mesa – gravadores, cassetes, microfone, como um Teatro da memória à maneira de Tadeusz Kantor ou Krapp em A Última Gravação de Krapp, de Samuel Beckett.
É ainda como reminiscência, enquanto retorno do que esquecemos, que a memória opera como factor de experiência e confere sentido ao presente. Assim se funda a ordem contrária ao princípio da causalidade – segundo a definição clássica. As viagens no tempo (àquele tempo) sendo impossíveis do ponto de vista físico, tornam-se possíveis através do tempo subjectivo da consciência, quando delimitamos e suspendemos esse instante do tempo físico: “se eu vivi e vi, eu lembro? E se eu não vivi e vi, eu vejo? Se eu nunca vi, eu lembro-me? E lembro-me de tudo o que vejo? O quê?”8 Personagens que retomam a história e transformam a estrada num Verão outrora solar. A experiência da alteridade na forma de um verniz vermelho. Corpos que desaprendem. Corpos que não conseguem esquecer:
Eu não conseguia pedir.
E eu não conseguia pedir-te para me deixares em paz de vez em quando.
Isso já foi há mais de cinquenta anos, Vânia. Éramos jovens.
Eu não consigo esquecer, há mágoas que ficam. O que é que eu hei de fazer?9
Submetidos ao tempo. Repetindo e deslocando a vida: “como chegaste até mim?” pergunta Vânia; “eu não cheguei, já cá estavas”, responde Octávio. É assim a história. Ou ainda e sempre, a casa. O lugar do regresso e o sujeito que se movimenta em torno de si próprio. Um epicentro:
Mas o que é o contrário do tempo? Não é a morte, simples reverso da vida (…). É preciso que se tornasse impossível contar o tempo, medi-lo, não porque ele passe depressa (…) mas pelo contrário, porque ele já não se mexe, como esses céus de Verão imóveis, azuis, desse azul do qual dizemos que é a cor do tempo. Sim, quando o tempo é imóvel e azul (…) esse grande belo tempo, esse eterno meio-dia, então podemos alongar-nos nele, descer e esquecê-lo como o ar que respiramos, no excesso da sua cintilante presença. Porque o contrário do tempo é a eternidade.10
A memória como imagem-cristal para convocar Deleuze. Através dela se opera o desdobramento do tempo. Uma Estação de Outono a cada instante transfigurada em presente e passado. Diferentes pela sua própria natureza. Um que faz passar o presente e outro que conserva o passado. É esta cisão que constitui o tempo. É ela, portanto, o próprio tempo. Como aquela cidade “que está atrás de nós”. Contudo, “não estamos a olhar para trás, estamos a olhar para o mar”.11 Espaço-tempo: o cais, a estação de comboio, a estação de serviço. A estação de Outono. A galeria ou a autoestrada. O mar e o céu. O terreno baldio e a fábrica. Antes e depois. Sinais possíveis e espaços que se cruzam para resolver um desaparecimento. Fumo e sons do exterior abraçam o espaço cénico, corpos refugiam-se em colchões e esponjas potenciando a sintaxe e funcionalidade dramatúrgica. Limpar o subterrâneo como quem resiste à guerra. João e Fúcsia ou “o primeiro homem transformado no segundo (…). Esta João mais pequena com um vestido de Verão que arrisca usar, nesta altura do ano”.12
O trabalho da memória – a terceira pessoa: “Estava lá tudo. O caderno. A fotografia. Os lugares onde nos encontramos.”13 Talvez a imagem fotográfica não ajude a recordar mas sim a esquecer, disse Marguerite Duras. Recordações e esquecimentos que ora naufragam na misteriosa profundidade, ora deslizam na contemplação da superfície:
não se julgue que o presente, quando passa, se converte na mais próxima das nossas recordações. A sua metamorfose pode levá-lo a cair no fundo da nossa memória, como também pode deixá-lo à superfície; só a densidade própria e a significação dramática da nossa vida decidem o seu nível.14
Como se o tempo nos pertencesse. Palavras. Sempre elas. Marcas espalhadas em labirintos. Para perder o tempo. Para nos perdermos. A psicanálise ensinou-nos que estamos doentes da repetição e que por ela nos curaríamos, escreveu Deleuze. Repetindo o que já não pode substituir, o tempo do atraso, é a memória que sobrevive à presença vivida. Tempos e espaços que se anunciam antes de lá chegarmos. Antes de os esperarmos. Todas as variáveis se podem considerar nesta equação infinita. É sempre possível recomeçar. Como em Estação de Outono, há quem desapareça por vontade própria.
Hoje chega de escrever. Final de escrever.
Estamos no Outono. A seguir vem o Inverno… 15
A autora escreve segundo a antiga ortografia.
1 O ciclo Sobre Lembrar e Esquecer, concebido por Paula Diogo, articula três espectáculos: um primeiro, com o nome que designa aquele ciclo, estreou no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa, a 3 de Abril de 2018, um segundo intitulado Paisagem – Sobre Lembrar e Esquecer II , com a respectiva estreia no formato on-line no Teatro Municipal do Porto, a 26 de Março de 2021 e ainda um terceiro e último espectáculo intitulado A Estação de Outono – Sobre Lembrar e Esquecer III, que estreou no CCB integrado no Festival Temps d’Images, no dia 28 de Outubro de 2021. As notas diárias do caderno da avó da actriz Paula Diogo constituem o ponto de partida deste ciclo. Em vias de perder a memória, a avó registava diariamente neste caderno o seu quotidiano.
2 Étienne Klein – “La question du temps”, in Sciences. Centre Georges Pompidou, Bélgica, Janeiro 2000, p. 4.
3 Sobre Lembrar e Esquecer. Interpretado por Estelle Franco, Masako Hattori, Paula Diogo e Sónia Baptista. O espectáculo foi construído por Paula Diogo, Sónia Baptista, Mariana Ricardo, Estelle Franco e Masako Hattori.
4 Notas diárias do caderno da avó da actriz Paula Diogo.
5 Sobre Lembrar e Esquecer – id., ibid. Como afirmou Gilles Deleuze “uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes“, in Diferença e Repetição. São Paulo: Ed. Graal, 1988, p. 476.
6 Paisagem – texto de Renato Linhares para o espectáculo interpretado por Paula Diogo e Tónan Quito. Colaboração com o colectivo Foguetes Maravilha.
7 Paisagem – id., ibidem.
8 Paisagem – id., ibidem
9 Paisagem – id., ibidem
10 Camille Laurens – “Attente/Temps”, in Le temps, VITeFiction, Exposição Le temps vite, Centre Georges Pompidou, Bélgica, Janeiro 2000, s/p.
11 Estação de Outono – texto de Chris Thorpe e Alexander Kelly para o espectáculo interpretado por Cláudia Gaiolas e Paula Diogo.
12 Estação de Outono – id., ibid.
13 Estação de Outono – id., ibid.
14 Jean-Paul Sartre – Situações I . Lisboa: Publicações Europa-América, 1968, p. 66.
15 Notas do caderno da avó de Paula Diogo.