CELESTIAL BODIES | Publicação – preview III

Cimento macio por Paula Diogo

Tinha estas palavras escritas no meio de uma página em branco no meu bloco de notas.
Na nossa primeira semana juntas, a Lígia usou a expressão para descrever o chão onde nos costumávamos sentar, na parte de trás do edifício da Moita no Vale da Amoreira.
Lembro-me de ela ter dito isto referindo-se ao calor e à sensação agradável que tínhamos quando nos sentávamos lá fora, apesar do chão ser de cimento.
Esta expressão ficou na minha cabeça durante todo o encontro. Resolvo agora voltar a ela.

A solidez das propostas artísticas não é obrigatoriamente definida pela rigidez a que muitas vezes os meios de produção nos obrigam. Aliás, acho que o principal exercício para alguém que se dedica às práticas artísticas é perceber como preservar a “suavidade” dentro de mecanismos cada vez mais rígidos e burocráticos. Como criar e manter estruturas de trabalho que não aniquilem o gesto artístico.
Creio que esta tem sido a minha maior preocupação nos últimos anos. Esse equilíbrio entre um trabalho extremamente burocrático e repetitivo e uma prática artística que se deseja que continue a ser arriscada, imprecisa e rasurada.
O encontro Celestial Bodies parece condensar no “coração” dos seus princípios este desejo de um espaço para uma prática artística respirável e flexível, mas ao mesmo tempo assertiva e focada.
O desejo de criar espaços de cuidado e atenção é efectivo e tem de ser acompanhado de uma prática diária. Essa prática precisa de ser constantemente aferida e ajustada e não deve nunca ser tomada por garantida, porque é acima de tudo um estado transitório e assim deve permanecer para que não estagne e se torne obsoleta.
Uma prática ancorada no corpo e no mundo como matéria. Matéria que nos forma e matéria com a qual interagimos. Porque efectivamente mais não somos do que massa/corpos em órbita e relação.
O cuidado acompanha todos os passos desta relação, como se tivéssemos constantemente de aprender o que cuidar significa e como pode esse cuidado ser manifestado em diferentes situações. Como efectivar esse cuidado face às situações que se nos apresentam? Como se expressa, como se manifesta? Como responde aos acontecimentos?
Durante o encontro lembro-me de ter dito a alguém: sinto que andamos constantemente em trânsito de uma ideia pré-concebida para outra. A verdade é que acho que, enquanto estivermos assim, não estamos completamente perdidas, porque continuamos a acreditar que pode aparecer uma ideia nova que não conhecemos que nos vai fazer mover do sítio ao qual nos agarramos com unhas e dentes agora, fazendo-nos avançar para a ideia seguinte, seguras que depois desta virá outra e outra e outra, e outra…
Como ficar com o problema e não ficar no problema*. O encontro em Lisboa colocou em diálogo uma constelação de artistas improváveis, com um único desejo comum: o de aceitar estar em diálogo com o problema que significa estar em diálogo. A generosidade destas artistas continua comigo até hoje. Sei que aceitaram o convite por confiarem em mim e na Lígia, mas também porque são artistas que carregam no âmago das suas práticas uma vontade genuína de ser desestabilizadas pelo outro, é nesse sentido que aceitam que o seu trabalho seja atravessado pelo problema. E isso é algo precioso a preservar.
Aqui surge outra ideia, que é a ideia de comunidade. Há quem diga que o desejo de comunidade corresponde ao desejo de confrontação. No teatro, a ideia de comunidade assemelhava-se muitas vezes ao culto. Grupos de pessoas unidas por uma ideologia na qual vivem, comem, constroem, trabalham juntas. Ora esta ideia de comunidade ruiu, há quem diga que pela necessidade de protagonismo individual. A verdade é que é difícil criar comunidades/grupos nos quais a vontade individual consiga ter expressão. A vontade do grupo será sempre mais forte, e do indivíduo (e aqui encontramos a lógica que nos pode salvar dos números) é sempre esperado que abra mão da sua vontade perante o bem colectivo. Ora, criar comunidades que integrem necessidades individuais exige trabalho, tanto para o grupo como para o indivíduo em causa. E voltamos aqui ao lugar do desassossego. E o desassossego é positivo, ainda que temporariamente desconfortável.
O que se tornou claro para mim neste encontro foi o desejo de que o Celestial Bodies possa transformar-se num chão sólido para um grupo de artistas que durante um tempo limitado decidem estar em relação. E, apesar de sólido, esse chão tem de ser macio o suficiente para acolher quedas e mergulhos de cabeça.
Tenho a sensação também, ao terminar, que para que isso aconteça precisamos de nos ligar a este espaço com algum desapego, permitindo que ele se transforme e sofra mutações como um organismo vivo, com vontade própria e necessidades particulares. Creio que a sua essência está em nunca darmos esse espaço como garantido, e permitirmos que a cada novo encontro o “organismo” se reorganize e encontre o seu lugar, acolhendo as necessidades das artistas que o constituem.

* Referência ao livro Staying with the Trouble, de Donna Haraway


Soft concrete by Paula Diogo

I had these words written in the middle of a blank page in my notebook.
In our first week together, Lígia used the phrase to describe the floor where we used to sit, at the back of the Moita building in Vale da Amoreira.
I remember her saying this referring to the warmth and pleasant feeling we had when we sat outside, despite the floor being concrete.
The phrase stayed in my mind during the whole meeting. I now decide to go back to it.

The solidity of artistic proposals isn’t necessarily defined by the rigidity that the means of production often force upon us. In fact, I think the main exercise for someone who devotes themselves to artistic practices is to understand how to preserve “softness” within increasingly rigid and bureaucratic procedures. How to create and maintain work structures that don’t annihilate the artistic gesture.
I believe this has been my greatest concern in recent years. That balance between an extremely bureaucratic and repetitive work and an artistic practice that should continue to be risky, imprecise and scratched out.
The Celestial Bodies meeting seems to condense at the “heart” of its principles this desire for a space for an artistic practice that is breathable and flexible, but at the same time assertive and focused.
The desire to create spaces of care and attention is effective and must be accompanied by a daily practice. This practice needs to be constantly assessed and adjusted, and should never be taken for granted, because it is above all a transitory state and should remain so, lest it stagnate and become obsolete.
A practice anchored in the body and in the world as matter. Matter that shapes us and matter with which we interact. Because in fact we are nothing more than mass/bodies in orbit and relation.
Care accompanies every step of this relation, as if we constantly had to learn what caring means, and how this care can manifest itself in different situations. How can that care be carried out in the situations that present themselves to us? How is it expressed, how does it manifest itself? How does it respond to events?
During the meeting I recall saying to someone: I feel like we are constantly in transit from one preconceived idea to the next. The truth is I think that as long we’re in this state, we’re not completely lost, because we still believe that a new idea we don’t know about might appear and shift us from the place we cling on to for dear life, making us move on to the next idea, certain that after this one there will be another and another and another, and another…
How to stay with the trouble and not stay in trouble*. The meeting in Lisbon brought into dialogue a constellation of unlikely artists, with a single common desire: to accept to be in dialogue with the trouble that being in dialogue implies. These artists’ generosity remains with me to this day. I know they accepted the invitation because they trust Lígia and me, but also because they are artists who carry at the core of their practices a genuine desire to be unsettled by the other, and it is in that sense that they accept their work to be permeated by the trouble. And that is something precious that should be preserved.
At this point another idea arises, which is the idea of community. Some say that the desire for community amounts to a desire for confrontation. In the theatre, the idea of community often resembled a cult. Groups of people united by an ideology within which they live, eat, build and work together. Now this idea of community has collapsed, some say because of the need for individual need to be center stage. The truth is that it is difficult to create communities/groups where individual desires can find expression. The interests of the group will always be stronger, and the individual (and here we find the logic that can save us from numbers) is always expected to give up their desires for the common good. Now, creating communities that incorporate individual needs requires work, both from the group and from the individuals concerned. And here we return to the place of unrest. And unrest is positive, even if temporarily uncomfortable.
What became clear to me during this meeting was the desire for Celestial Bodies to become a solid ground for a group of artists who decide to be in relation for a limited time. While solid, that floor has to be soft enough to accommodate falls and headfirst plunges.
I also have the feeling, now that we reach the end, that for that to happen we need to connect to this space with some detachment, allowing it to transform and mutate like a living organism, with a will of its own and specific needs.
I believe that its essence lies in never taking this space for granted, letting the “organism” rearrange itself with each new meeting, finding its place, and welcoming the needs of the artists that comprise it.

* Reference to the book Staying with the Trouble, by Donna Haraway.