OBJETOFILIA (sobre O Palácio de Lígia Soares e Paula Diogo)
As coisas têm peso, massa, volume, tamanho
Tempo, forma, cor, posição, textura, duração
Densidade, cheiro, valor, consistência
Profundidade, contorno, temperatura
Função, aparência, preço, destino, idade, sentido
As coisas não têm paz.
Arnaldo Antunes
Quando entramos no espaço cénico do TBA, entramos pelas coxias de um espetáculo que parece já estar em andamento. Vemos Paula sentada diante de uma mesa com alguns poucos objetos, como que encrustada no avesso da bancada de espectadores. Paramos ali, naquele não-espaço, canhestro e provisório, uma espécie de bengaleiro improvisado onde devemos deixar nossos pertences mais ou menos valiosos antes de um evento importante. Somos auxiliados por Paula, que não vê mas ouve, tateia, procura, pergunta, tenta; e assim acredita ver. Paula nos conduz pela penumbra, nós que estamos mais cegos do que ela quanto ao nosso destino. Há algo de mitológico nesta cena – uma condutora cega à frente de algumas almas perdidas – mas é um mitológico despido de toda a solenidade, mais para o melancólico, mais para o singelo. É quase como se nos alertasse para o fato que, diante de um espetáculo que irá se apoiar tanto nas coisas, devemos confiar em nossos sentidos.
Após passar por um corredor e subir alguns degraus chegamos ao palco, onde já nos esperam Lígia e Crista e onde estaremos juntos durante a maior parte do tempo. É aqui que temos pela primeira vez a noção do que é feito este Palácio. É uma espécie de grande depósito de guardados, um depósito subterrâneo repleto de coisas: pilhas bem-organizadas mas incongruentes de armários, estantes, mesas, cadeiras, poltronas, tapetes, frigoríficos, colchões, candeeiros, vasos, caixas de mudanças, mantas, roupas, livros, globos terrestres, relógios, brinquedos. Coisas novas e velhas, bonitas e horrendas, úteis e desnecessárias, tudo aquilo que acumulamos e descartamos continuamente em nossas vidas. Coisas. (É um bocado aterrorizante pensar que aquela quantidade de objetos foi reunida durante uma campanha de doações de pequena escala durante algumas poucas semanas de verão. Tanta coisa que está só ali, inerte, a ocupar espaço no planeta. Tão difícil às vezes colocar em movimento o que está inerte.)
Este ponto de partida – um cenário e um espetáculo construídos a partir de objetos doados, que após o fim do espetáculo serão doados a quem deles precise – é simples e extraordinário ao mesmo tempo. Cobre tudo aquilo que estamos a ver com uma camada grossa de afeto, memória, urgência, desconforto. Curiosamente, este espetáculo que tem à disposição tantos acessórios para a nossa comodidade coletiva não é confortável. Ou pacificador. Neste Palácio como que de fábula de mil e uma noites, as palavras e as coisas são objetos de dissenso e desencontro, de ruído e de dúvida, de perigo. Há acontecimentos misteriosos, ruídos desincorporados, desaparecimentos inexplicáveis. Como nas histórias de fantasmas, o cotidiano se torna estranho, inquietante. Sim, este Palácio é assombrado.
“É preciso deixar as coisas serem coisas”, diz Paula a dada altura. Lígia questiona se a cadeira é feita para nos servir ou se somos nós que servimos à cadeira. As coisas são constantemente colocadas no papel de protagonistas, mas não há uma busca de antropomorfizar as coisas. Não há aqui bules falantes e guarda-chuvas dançantes. Trata-se talvez do movimento contrário, como um monge budista a dissolver a sua personalidade na contemplação de uma xícara de porcelana. Ao mesmo tempo, este espetáculo está longe de um sereno exercício de meditação. Há cadáveres a acumular-se à porta do palácio, dizem-nos: “todos estão a morrer”. Uma cadeira não é apenas uma cadeira uma cadeira uma cadeira; uma cadeira é objeto de uma controvérsia intransponível, como se estivesse no centro de uma cimeira em torno de clima, fronteiras ou direitos inalienáveis.
Este é um movimento coerente na trajetória artística de Paula e Lígia, no seu engajamento em diferentes projetos que deslocam o nosso olhar para fora do centro, ou trazem o que está na periferia para o centro. O PALÁCIO é antes de mais nada um projeto generoso. Nem estou a falar da vida das pessoas que será materialmente afetada pelos objetos que agora servem de cenário ao espetáculo. Mas é um projeto que pergunta antes de afirmar e afirma sem pretender-se o farol flamejante do pensamento contemporâneo. Lembrando Ursula K. Le Guin, este palácio funciona mais como uma bolsa para carregar coisas: “Eu chegaria ao ponto de dizer que a forma natural, apropriada e adequada do romance poderia ser a de um recipiente, uma cesta. Um livro carrega palavras. Palavras guardam coisas. Elas carregam sentido.”
Palavras carregam sentido, mas Paula e Lígia expandem as palavras e os sentidos, a começar pelo nome do projeto: O PALÁCIO. Um edifício que não se constrói na arquitetura, mas na função, na ocupação. Um recipiente que parece refletir (ou carregar) os jogos lúdicos de Tati e Perec, a rosa de Gertrude e a pedra de Drummond, a vertigem das listas de Eco e os slogans subversivos de Kruger, a idiossincrasia de Miranda July e o insurrecionismo da Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven. Onde a autoria se dilui nas vozes partilhadas e sobrepostas, no cenário que é o negativo da grandiosidade operística, ou melhor, é a solarização da grandiosidade operística, na composição sonora que nos envolve por todos os lados como bolas de esferovite numa caixa de papelão, no desenho de luz que subverte movimento a movimento a hierarquia entre cena e projetores. Cada elemento do espetáculo parece estar a dar passagem aos demais, e assim todos têm de passar ao mesmo tempo. Até mesmo a primazia do performer se dilui: são as coisas que têm a última palavra no espetáculo. É um estupendo truque de desaparição, um palco vazio e nem por isso menos habitado.
Mas estou a adiantar-me. Antes de sairmos do Palácio, antes de finalmente sentarmos no lugar usualmente reservado aos espectadores, antes de um texto que é o mais belo convite à imaginação, o mar invade o Palácio. De repente, aquele depósito subterrâneo de guardados onde estamos transforma-se numa praia em dia de vento. Somos engolidos pelo rugido de ondas a rebentar inquietantemente próximas, objetos a serem levados de lá para cá por uma maré invisível, uma cortina que se abre como neblina a revelar um horizonte distante. E de repente sentimos um sopro de ar fresco a tocar o nosso rosto! E um sopro de ar fresco é um evento tão raro no interior de uma sala de espetáculos, quase como encontrar inadvertidamente uma aparição sobrenatural, impossível, uma alforreca do tamanho de uma tenda de circo a voar entre as nuvens. É despretensioso e mágico. É tudo o que o teatro poderia ser o tempo todo: não uma arquitetura mas uma função.
Alex Cassal
foto @João Tuna