SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO | Bob Souza | olhar externo

PALAVRAS SOTERRADAS

SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO, apresentado no Teatro Brás Cubas, na 7º Edição do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, explora a profundidade literal e metafórica do confinamento, criando uma narrativa visual que funde o real e o abstrato. A encenação, de Paula Diogo e Renato Linhares, dialoga com o texto de Alex Cassal e Felipe Rocha, partindo do evento histórico dos 33 mineiros presos na mina San José no Chile, em 2010, criado pela colaboração entre os portugueses da Má-Criação e os brasileiros do Foguetes Maravilha e Dimenti, utilizando a escuridão e a musicalidade para imergir o público em uma jornada densa e poética.

A narrativa visual do espetáculo se constrói pela utilização do espaço cênico como um ambiente de isolamento extremo e introspecção. A caverna, a mina e o buraco menos concreto sugerido pela encenação são apresentados como lugares que transcendem o físico, refletindo o estado psicológico das personagens, na construção de: Alegria Gomes, Carla Galvão, Cláudia Gaiolas, Crista Alfaiate, Fábio Osório Monteiro, Felipe Rocha, João Lopes Pereira, Renato Linhares e Yaw Tembe. A escuridão desempenha papel central, quase como uma personagem por si só, projetando sombras e feixes de luz que se confundem com os corpos dos atores e atrizes. Esses corpos em movimento, ora se fundindo com o breu, ora se destacando de forma quase espectral, criam uma dinâmica de invisibilidade e presença, sugerindo a constante luta entre desaparecer e resistir.

A iluminação, na concepção de Tomás Ribas, emerge como uma força primordial, rompendo a escuridão com precisão simbólica e estética. Na narrativa visual do espetáculo, o contraste entre luz e sombra não é apenas um recurso técnico, mas um reflexo das lutas internas dos personagens, confinados tanto física quanto emocionalmente. A escuridão da caverna e da mina representa o desconhecido, o medo e a opressão, enquanto a luz que ocasionalmente rasga essa escuridão sugere momentos de esperança, revelação e resistência, destacando as nuances entre o conhecido e o desconhecido, o palpável e o abstrato, intensificando a sensação de opressão.

A luz, ao surgir de forma dramática e cuidadosa, marca os instantes em que as emoções reprimidas, as histórias e as palavras soterradas vêm à tona. Esses rompimentos luminosos parecem ressignificar o espaço: o que antes era um vazio sufocante, de repente ganha profundidade, revelando novas cores e dimensões, tanto físicas quanto simbólicas. Assim, a luz não apenas ilumina, mas também desvenda – a caverna se torna um lugar de exposição, e o breu que antes engolia as personagens é temporariamente afastado, permitindo vislumbrar suas vulnerabilidades.

Quando a luz rompe a escuridão, ela não apenas ilumina o espaço, mas também destaca a luta pela sobrevivência e a busca por significado em meio à adversidade. Cada feixe de luz parece carregar consigo um fragmento de esperança, um vislumbre de salvação em meio ao confinamento subterrâneo, ampliando o contraste entre o desespero e a resistência humana.

A música, com direção de Felipe Rocha, que perpassa toda a montagem, tem função mais que acessória; é uma extensão da dramaturgia. As palavras ganham novos sentidos ao se transformarem em melodia, criando uma atmosfera que oscila entre o realismo e o sonho. A musicalidade se descola do cotidiano, onde a comunicação verbal é menos importante que a forma como é sentida. Isso amplifica a experiência sensorial do espetáculo, permitindo que a história não apenas seja contada, mas vivenciada de forma imersiva.

No aspecto técnico, a cenografia, de F. Ribeiro e Saulo Santos, é minimalista, mas poderosa. Não se trata de recriar uma mina de forma literal, mas de sugerir sua presença através de elementos simbólicos. O espetáculo constrói, assim, uma visualidade que provoca uma reflexão sobre a condição humana diante do desconhecido, do medo e da esperança. A jornada subterrânea se torna um espelho para os conflitos internos das personagens, enquanto os elementos visuais e sonoros expandem a narrativa para além do palco, reverberando nas percepções do público.

Em SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO, as palavras parecem soterradas, assim como os corpos confinados na escuridão. Elas emergem do silêncio, impregnadas de significados densos, como se precisassem ser escavadas para serem compreendidas. O espetáculo se desenrola em um espaço onde a fala não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas um elemento visceral, soterrado sob camadas de emoção e contexto. Palavras como “espectro” e “radiação” carregam um peso existencial, tornando-se parte da atmosfera opressiva e metafísica que envolve as personagens.

Essa ideia de “palavras soterradas” traduz o próprio conflito dos que estão aprisionados, seja física ou mentalmente, em seus buracos particulares. Elas ganham vida de forma lenta, como se lutassem para sair à superfície, e ao serem pronunciadas, carregam o peso do silêncio que as precede. A sonoridade da peça reforça essa metáfora, ao transformar o texto em música, prolongando e dilatando o sentido das palavras, ecoando na caverna e no público. A linguagem torna-se, então, parte do confinamento, com a necessidade de ser libertada do peso que a oprime – o peso do silêncio, da espera, do medo e do desconhecido.

“Subterrâneo, um Musical Obscuro”, com a produção de Ana Barros no Brasil, constrói uma visualidade que provoca uma reflexão sobre a condição humana diante do desconhecido, do medo e da esperança. Essa imersão na metáfora das palavras soterradas traz à cena a complexidade das histórias humanas representadas no palco, onde o esforço de articulação, seja verbal ou corporal, é como o ato de cavar para encontrar o ar, a vida, o sentido. A jornada subterrânea se torna um espelho para os conflitos humanos, enquanto os elementos visuais e sonoros expandem a narrativa para além do palco, reverberando nas percepções do público. 

Bob Sousa é fotógrafo, pesquisador, crítico e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp, onde tem Mestrado em Artes, e jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes e do Prêmio Arcanjo de Cultura.


fotos @João Tuna

SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO tem apoio à internacionalização de República Portuguesa – Direção Geral das Artes e Fundo Cultural da Fundação GDA.