SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO | Kil Abreu | olhar externo

SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO ou: TROUXESTE A CHAVE?

SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO é um espetáculo levantado por dois grupos do Brasil – Dimenti e Foguetes Maravilha, junto aos artistas portugueses do Má-Criação. A inspiração da dramaturgia é um episódio ocorrido no Chile em 2010, quando mais de trinta homens morreram soterrados em uma mina. (*) No entanto, veremos que a morte dos trabalhadores nas profundezas é o disparador para uma abordagem cênica aberta, que os grupos anunciam em expressões como “uma poeticidade descolada do cotidiano” prenhe de “contornos filosóficos”, que têm a finalidade de “amplificar metáforas”. Então podemos intuir que o interesse das companhias é menos pelo aspecto factual do que aconteceu e mais pela pesquisa de linguagem, strictu sensu. Então aquela notícia inicial se espraia em uma cena que prioriza o discurso propositalmente fugidio, que favorece a busca de sentidos por cada espectador em particular. Ou seja, a performance chama a plateia não coletivamente, mas a cada um dos indivíduos, convidados a imaginar o seu próprio subterrâneo, este espaço em que a poética, a metáfora e o conteúdo filosófico serão lidos de tantas maneiras quanto forem os espectadores e espectadoras que quiserem fazê-lo.

O debate sobre as relações entre autonomia e determinação da obra de arte não é novo, claro. Deve existir a pelo menos uns vinte e cinco séculos. Nunca foi pacífico e dele derivam até hoje discussões importantes, como a do lugar social do teatro, as funções ou disfunções da linguagem no campo da estética e etc.

Então, se este aspecto interessar, podemos dizer que o conjunto de quadros costurados em SUBTERRÂNEO alinha-se melhor a uma poeticidade livre e relativista. Também nessa direção da linguagem autônoma, ou resultado dela, o espetáculo acende subliminarmente certa ideia de fé no poético. No poético proposto como mecanismo útil à autonomia. Por outro lado, isso não quer dizer que o apego a uma ideia genérica de poesia não possa redundar em ingenuidade política. Ou que a abertura não acabe por se transformar em fechamento. Ou em má poesia. Para ficar em um dos lances que o espetáculo apresenta, poderíamos pensar sobre como somos chamados a participar de uma fruição que tende a ser mais privada que coletiva. E, ainda, sobre o sentido disso quando o racha no tecido social é uma das evidências mais urgentes do momento. O que é isso que chamamos vocação pública do teatro? É apenas a reunião presencial das pessoas? É isto, mais a possibilidade de discutir a vida em sociedade? É a invenção a partir dos jogos de linguagem? Ainda que nada disso esteja colocado diretamente como tema em SUBTERRÂNEO…, são questões que surgem pelas laterais.

O resultado do trabalho dos três coletivos que se irmanaram nesta montagem é bastante vistoso, sustentado pela competência técnica dos artistas e pela inquietação narrativa da dramaturgia. Temos ótimos intérpretes, que deslizam sempre vigorosamente entre a representação e a presentação performativa. Temos também um plano visual muito bonito, com sua estrutura cenográfica a tentar dimensionar talvez o que seria este estado de espírito dos que de alguma forma se encontram no buraco e sem horizontes à vista. O desenho de luz é espetacular, com seus cortes múltiplos, enviesados e precisos. E há a música, que é como a ânima, a alma do espetáculo. Além de ter papel importante na narrativa, talvez seja o elemento que melhor aponta a vocação laboratorial do projeto. Em resumo, no conjunto é um trabalho de grande efeito cênico.

É difícil totalizar a leitura de uma obra que não pede para ser totalizada, que nasceu na base dos fragmentos e coloca-se afins a muitas entradas. Mas como a passagem é grátis, embarcamos aventurosamente no que segue: ainda que a abertura seja uma condição quase inegociável do espetáculo, talvez haja alguma possibilidade de ler ali alguns aspectos recorrentes sem precisar cair no vale-tudo ou apenas na descrição dos recursos formais. E a informação mais saliente, propomos, tem a ver com o que dizia Raymond Williams, um filósofo de linhagem marxista. Ele chamou a coisa de “estrutura de sentimento”. É um conceito útil, embora inacabado e de difícil contorno. Aqui para o nosso uso pode ser visto como algo já além daquilo que no diz sobre um “sentimento de época”. Williams nos explica que as estruturas de sentimento nem sempre se apresentam objetivamente. Não podem ser lidas como objeto porque muitas vezes ainda não estão totalmente inscritas no repertório comum, como ideologia. A arte seria um espaço privilegiado para a expressão dessas estruturas. O princípio é que a intuição artística, quando assimilada em obra, pode deixar os resíduos da cifra fresca do pensamento que a forjou. Pensamento não necessariamente intencional, mas que de alguma maneira está lá, tendente a fazer as ligas entre a forma artística e o contexto social em que ela nasce.

A partir daqui propomos procurar então perguntas quem sabe produtivas diante do trabalho dos três grupos. Por exemplo,o que poderíamos dizer sobre a medida ética a ser pensada, entre o elemento factual que inspirou a montagem (a morte – ou assassinato – de operários em circunstâncias laborais), e a sua apropriação, a sua assimilação aos depoimentos individuais? É algo que, em linguagem poética, poderia ser perguntado assim: o que é, o que diz e como sobrevive a metáfora proposta? Pois se a metáfora tem sempre ao menos dois termos, não é uma correspondência em abstrato. Dá o que pensar.

Em outra frente: o que poderia ser esta sensação de enclausuramento levada às cenas, diante de um mundo cada vez mais difícil de compreender e mais fácil de contestar? Isto teria algo a ver com o sentimento de falência diante dos projetos históricos vencidos ou não concluídos? De outra forma: como podemos ler, não apenas individualmente, mas quanto à vida em sociedade, a relativa melancolia que transborda do espetáculo? Melancolia matizada com o humor, mas ainda assim melancolia. A falta de saídas do buraco, na forma como aparece na dramaturgia, é uma demanda? Para falar em termos psicanalíticos, é uma queixa? Se sim, o espetáculo seria um elogio ao melancólico? Mas não é de poesia que estamos falando? Qual seja, de uma imaginação outra, possível, por via da linguagem? Imaginar politicamente um pulo para fora da queixa é algo que ainda encontra lugar em nossas fabulações de futuro? Se não, poderíamos pensar que o olhar melancólico diante do mundo poderia ser visto como uma escolha ética politicamente regressiva, apesar de justificada?

Não é preciso dizer que todas estas perguntas são intencionadas. Provavelmente são já posições, apresentadas como questões. Mas, esperamos, posições não intrusas. É preciso respeitar o espírito da coisa (do espetáculo), resguardar a sua materialidade própria. Mas não há mal em tentar compreender essa materialidade. Se possível, sem cair no limbo obscuro do moralismo estético. É uma tentativa.

Parafraseando Drummond, diante da forma com que o espetáculo se apresenta e nos provoca, é como se os artistas que o criaram nos perguntassem, um a um: trouxeste a chave? Independente das questões sugeridas aqui, a obra segue entre a sua liberdade autônoma e as determinações que embora não apareçam no primeiro plano certamente estão lá, talvez esperando para serem iluminadas pelos espectadores que assim o quiserem. E, quanto a isso, nenhuma posição é ilegítima.

Kil Abreu em Cena Aberta.


fotos @Estelle Valente

SUBTERRÂNEO, UM MUSICAL OBSCURO tem apoio à internacionalização de República Portuguesa – Direção Geral das Artes e Fundo Cultural da Fundação GDA.